O pior dia de trabalho da minha vida
Aconteceu ontem. Uma chamada para o departamento da Segurança avisou-nos de um acidente grave. Ficámos com os cabelos em pé. As chamadas seguintes confirmavam. Assistência médica e seguros accionados de imediato. A 5ª chamada anunciava que tínhamos de ir doar sangue. 4 unidades. Já o fiz antes, levantei-me de imediato. Em segundos descobrimos o segundo dador, um habitual. A chamada seguinte foi pior: 2 das unidades tinham que ser BRh+. Começou o frenesim das chamadas. Todos diziam:
- Mas eu sou ORh+, eu posso dar sangue para ele.
- Mas a clínica não quer. Fica em stanby.
As chamadas continuaram e em minutos tínhamos o primeiro B
- Vai sair neste momento do estaleiro como motorista. Tem o teu número. Explica onde é a clínica. Ficam o tempo que for preciso. É dador habitual
Minutos depois, uma mensagem: "Temos aqui um colega com esse sangue e que se voluntariou. Vai a caminho da clínica".
Chegámos lá os dois primeiros. Demos sangue (os meus receios, que reconheço que tive, de ser um lugar assustador com material de pouca confiança, não se concretizaram; atendimento simpático, tudo esterilizado). Lá fora continuava a azáfama de perceber o estado do acidentado.
- Ainda não foi para a sala mas não corre perigo de vida.
Chega o primeiro B. Tive pena dele. Não lhe conseguiam apanhar uma veia de jeito. Deve ter hoje os braços todos pisados.
Chega o segundo B. Toma aspirina para fluidificar o sangue. Não aceitaram que ele doasse.
- Mas eu posso!!! Os médicos em Portugal dizem que não faz mal nenhum! Não há motivo. Eu quero dar! Eu assumo a responsabilidade.
- Mas o sistema de sangue angolano não permite. É para sua protecção. Há regras que variam de país para país.
Tal como a história de não usar sangue tipo O. Regras são regras.
Nesta altura começou a maior caça ao sangue que alguma vez vi. Liguei para todos os amigos para saber se alguém tinha listas de grupos sanguíneos para tentarmos ligar às pessoas. Nada. As empresas não têm essa informação. Dentro da empresa não ficou ninguém a quem não se tenha perguntado. Até aos subempreiteiros. Não sobrou obra, estaleiro, empregada de limpeza. Os meus colegas ligavam para os amigos deles. A certa altura descobrimos mais um colega. Depois outra chamada:
- Vai uma colega a caminho.
Ele deu. Ela não podia. Faltava um. A busca continuava. Finalmente conseguimos. 2 dadores de sangue tipo B.
Mandámos toda a gente embora da clínica. A gestão dos dadores estava feita. Era só esperar pelo final da operação. Ficámos 3, sentados perto do bloco. De 10 em 10 minutos, tocava um telefone:
- Novidades?
- Nada. Está no bloco?
- Estamos bem de sangue? Precisamos mais?
- Para já não. Tranquilo.
Deixem-me dizer que a operação dele nunca esteve em perigo. Havia sangue, era só reposição. Mas não queríamos arriscar.
No final, a operação correu bem. As mazelas são para sempre. Vai ter de se habituar a uma deficiência. Não vai ser fácil avançar. Não faço ideia do que lhe vai hoje na cabeça. Sei que tem de ser muito difícil.
Quando saímos de lá, fomos à obra. A noite não tinha acabado. Um problema com outro colega. Fomos para dar apoio mas a resolução deste problema não passava por nós. Ali, só os colegas nacionais podiam ajudar. Fomos ao escritório. Todos olhavam e perguntavam:
- Como está?
Afundei-me numa cadeira e contei. No final, a frase que saía da boca de todos nós era a mesma:
-Que merda de dia. Porra.
Dizíamos isto no meio do silêncio. Apesar de tudo se ter resolvido, senti-mo-nos impotentes.
Mas aprendemos. Aprendemos que não podemos confiar no serviço de sangue angolano (no banco de sangue não havia reservas para além das 2 unidades que estavam na clínica). Não há o hábito de doar sangue por aqui, e por isso não há reservas. Aprendemos que precisamos de ter o grupo sanguíneo no processo de cada trabalhador. Não só para saber quem poderá ajudar, mas também para o caso de esse colega precisar de ajuda. Aprendi que há gente com medo de agulhas e que não consegue dar. Não tem problema, o que conta é a intenção. Aprendi que há sangues raros. E isso aqui é um drama.
Foi um dia mau. Muito mau. Sobretudo para o meu colega. Mas para todos nós quando nos sentíamos incapazes de ajudar.
Apetece-me esquecer o dia de ontem. Mas não quero esquecer que tanta gente saltou das cadeiras para ajudar, que tive de os mandar ficar quietos porque não podiam ajudar. Não quero esquecer que as regras dos jogos variam e pode sempre aparecer uma nova com que não cotamos. Não quero esquecer para evitar que se repita. Mas não o desejo a ninguém.
E sobretudo, espero que o meu colega arranje a coragem de seguir em frente e não se deixar desesperar.
Foi mesmo um dia mau.
- Mas eu sou ORh+, eu posso dar sangue para ele.
- Mas a clínica não quer. Fica em stanby.
As chamadas continuaram e em minutos tínhamos o primeiro B
- Vai sair neste momento do estaleiro como motorista. Tem o teu número. Explica onde é a clínica. Ficam o tempo que for preciso. É dador habitual
Minutos depois, uma mensagem: "Temos aqui um colega com esse sangue e que se voluntariou. Vai a caminho da clínica".
Chegámos lá os dois primeiros. Demos sangue (os meus receios, que reconheço que tive, de ser um lugar assustador com material de pouca confiança, não se concretizaram; atendimento simpático, tudo esterilizado). Lá fora continuava a azáfama de perceber o estado do acidentado.
- Ainda não foi para a sala mas não corre perigo de vida.
Chega o primeiro B. Tive pena dele. Não lhe conseguiam apanhar uma veia de jeito. Deve ter hoje os braços todos pisados.
Chega o segundo B. Toma aspirina para fluidificar o sangue. Não aceitaram que ele doasse.
- Mas eu posso!!! Os médicos em Portugal dizem que não faz mal nenhum! Não há motivo. Eu quero dar! Eu assumo a responsabilidade.
- Mas o sistema de sangue angolano não permite. É para sua protecção. Há regras que variam de país para país.
Tal como a história de não usar sangue tipo O. Regras são regras.
Nesta altura começou a maior caça ao sangue que alguma vez vi. Liguei para todos os amigos para saber se alguém tinha listas de grupos sanguíneos para tentarmos ligar às pessoas. Nada. As empresas não têm essa informação. Dentro da empresa não ficou ninguém a quem não se tenha perguntado. Até aos subempreiteiros. Não sobrou obra, estaleiro, empregada de limpeza. Os meus colegas ligavam para os amigos deles. A certa altura descobrimos mais um colega. Depois outra chamada:
- Vai uma colega a caminho.
Ele deu. Ela não podia. Faltava um. A busca continuava. Finalmente conseguimos. 2 dadores de sangue tipo B.
Mandámos toda a gente embora da clínica. A gestão dos dadores estava feita. Era só esperar pelo final da operação. Ficámos 3, sentados perto do bloco. De 10 em 10 minutos, tocava um telefone:
- Novidades?
- Nada. Está no bloco?
- Estamos bem de sangue? Precisamos mais?
- Para já não. Tranquilo.
Deixem-me dizer que a operação dele nunca esteve em perigo. Havia sangue, era só reposição. Mas não queríamos arriscar.
No final, a operação correu bem. As mazelas são para sempre. Vai ter de se habituar a uma deficiência. Não vai ser fácil avançar. Não faço ideia do que lhe vai hoje na cabeça. Sei que tem de ser muito difícil.
Quando saímos de lá, fomos à obra. A noite não tinha acabado. Um problema com outro colega. Fomos para dar apoio mas a resolução deste problema não passava por nós. Ali, só os colegas nacionais podiam ajudar. Fomos ao escritório. Todos olhavam e perguntavam:
- Como está?
Afundei-me numa cadeira e contei. No final, a frase que saía da boca de todos nós era a mesma:
-Que merda de dia. Porra.
Dizíamos isto no meio do silêncio. Apesar de tudo se ter resolvido, senti-mo-nos impotentes.
Mas aprendemos. Aprendemos que não podemos confiar no serviço de sangue angolano (no banco de sangue não havia reservas para além das 2 unidades que estavam na clínica). Não há o hábito de doar sangue por aqui, e por isso não há reservas. Aprendemos que precisamos de ter o grupo sanguíneo no processo de cada trabalhador. Não só para saber quem poderá ajudar, mas também para o caso de esse colega precisar de ajuda. Aprendi que há gente com medo de agulhas e que não consegue dar. Não tem problema, o que conta é a intenção. Aprendi que há sangues raros. E isso aqui é um drama.
Foi um dia mau. Muito mau. Sobretudo para o meu colega. Mas para todos nós quando nos sentíamos incapazes de ajudar.
Apetece-me esquecer o dia de ontem. Mas não quero esquecer que tanta gente saltou das cadeiras para ajudar, que tive de os mandar ficar quietos porque não podiam ajudar. Não quero esquecer que as regras dos jogos variam e pode sempre aparecer uma nova com que não cotamos. Não quero esquecer para evitar que se repita. Mas não o desejo a ninguém.
E sobretudo, espero que o meu colega arranje a coragem de seguir em frente e não se deixar desesperar.
Foi mesmo um dia mau.
Comentários
Beijos grandes!!!
Espero sinceramente que o teu colega recupere. E que vocês façam todo o barulho possível junto do governo angolano a ver se eles modificam essa situação!
Beijo. E obrigada, a pessoas como tu, que se preocupam.
Melhores dias virão, amiga!
Beijinhos.