Às vezes o verniz estala
Já vivi muito em Angola. Aprendi imenso. Cresci. Numas coisas tornei-me pior. Noutras melhor.
Já fiz viagens fantásticas, fiquei atolada em rios, parti veios de transmissão, vi incontáveis pôr-do-sol fantásticos, conheci gente boa, conheci gente menos boa, já comi muito funge e muita muamba, já jantei em restaurantes fantásticos, já cacei dinossauros, fiz resmas de amigos, já me ri muito, já me irritei muito, já andei pelo musseque, já andei pelos melhores restaurantes da cidade, já acampei na praia, já tomei banho ao nascer do sol no mar, já vi miúdos a brincar em água salobra e já deixei de estranhar, aprendi a conduzir na estrada de Viana e já me irritei vezes sem fim, já pensei que a Sandra de há 3 anos em muitas coisas não se reconheceria hoje, já acompanhei muita gente ao hospital, já andei desesperada a tentar arranjar sangue, já paguei por um vestido o equivalente a quase 2 salários mínimos nacionais. Já ouvi mil histórias de hospitais e natalidade infantil, já vi colegas a dizer que o bebé estava com paludismo, já ouvi histórias tristes, já ouvi histórias alegres. Fiz amigos. Vivi uma vida.
Já disse mal da minha vida por ter vindo. Já disse bem da minha vida por ter vindo.
Mas sempre tentei encarar isto, o lado menos bom, como simplesmente outra cultura. Outra maneira de viver. Recusei-me a ver o musseque como pobreza. Era apenas outra realidade. Não posso mudar o mundo. Faço o que consigo através do meu trabalho. E tentei para que isso não me afectasse ou não ia durar muito.
Mas ontem, a morte da V. doeu-me. Muito. Porque eu achei que, por trabalhar connosco, por receber um salário regular, estaria um pouco resguardada de muitos destes problemas. Mas afinal não. Morreu. E parece que na minha armadura, a armadura que me permitiu lidar com tudo durante estes anos, fissurou um bocadinho. Parece que caiu o véu que me protegia os olhos. Depois do meu ar de espanto inicial e do olhar de normalidade que ganhei a seguir, sinto que vou ter um outro olhar daqui para a frente. Só ainda não sei bem qual é.
Já fiz viagens fantásticas, fiquei atolada em rios, parti veios de transmissão, vi incontáveis pôr-do-sol fantásticos, conheci gente boa, conheci gente menos boa, já comi muito funge e muita muamba, já jantei em restaurantes fantásticos, já cacei dinossauros, fiz resmas de amigos, já me ri muito, já me irritei muito, já andei pelo musseque, já andei pelos melhores restaurantes da cidade, já acampei na praia, já tomei banho ao nascer do sol no mar, já vi miúdos a brincar em água salobra e já deixei de estranhar, aprendi a conduzir na estrada de Viana e já me irritei vezes sem fim, já pensei que a Sandra de há 3 anos em muitas coisas não se reconheceria hoje, já acompanhei muita gente ao hospital, já andei desesperada a tentar arranjar sangue, já paguei por um vestido o equivalente a quase 2 salários mínimos nacionais. Já ouvi mil histórias de hospitais e natalidade infantil, já vi colegas a dizer que o bebé estava com paludismo, já ouvi histórias tristes, já ouvi histórias alegres. Fiz amigos. Vivi uma vida.
Já disse mal da minha vida por ter vindo. Já disse bem da minha vida por ter vindo.
Mas sempre tentei encarar isto, o lado menos bom, como simplesmente outra cultura. Outra maneira de viver. Recusei-me a ver o musseque como pobreza. Era apenas outra realidade. Não posso mudar o mundo. Faço o que consigo através do meu trabalho. E tentei para que isso não me afectasse ou não ia durar muito.
Mas ontem, a morte da V. doeu-me. Muito. Porque eu achei que, por trabalhar connosco, por receber um salário regular, estaria um pouco resguardada de muitos destes problemas. Mas afinal não. Morreu. E parece que na minha armadura, a armadura que me permitiu lidar com tudo durante estes anos, fissurou um bocadinho. Parece que caiu o véu que me protegia os olhos. Depois do meu ar de espanto inicial e do olhar de normalidade que ganhei a seguir, sinto que vou ter um outro olhar daqui para a frente. Só ainda não sei bem qual é.
Comentários